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02 de Julho, 2020

Alteração do marco regulatório do saneamento

Alteração do marco regulatório do saneamento

Artigo de Diogo Vitor Pinheiro, Diretor de Assuntos Jurídicos da Assemae.

A ALTERAÇÃO DO MARCO REGULATÓRIO DO SANEAMENTO

Poucas vezes escrevi alguma linha de argumentação desejando estar errado.

Isto já ocorreu em minhas atividades na área jurídica, notadamente quando existe o dever profissional de preservar determinada tese, mesmo possivelmente contrária a valores pessoais.

Todavia aqui a vontade pela inexatidão é muito mais nobre.

A recente aprovação do projeto de lei que altera o marco regulatório do saneamento básico pelo Senado Federal, que deve ser sancionado pelo Presidente, é o alvo do meu desejo pouco ortodoxo.

Isto porque o enredo e a justificação de sua aprovação passam pela busca da chamada ‘universalização’ dos serviços de água e esgoto, integrantes do conceito moderno de saneamento básico.

Os números que se apresentam quando avaliamos o acesso à tais serviços sem dúvida são preocupantes. No que tange ao abastecimento de água, apesar de impactantes, não se comparam ao verdadeiro desastre quando olhamos para o esgotamento sanitário.

É ponto praticamente pacífico que estamos diante de uma política pública a ser alterada, buscando fomentar o acesso dos serviços de saneamento a todos. Trata-se de medida de direitos humanos, integrante inclusive dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU, os chamados ODS´s, nos quais o Brasil inclusive é signatário.

Todavia meu ponto neste texto é refletir acerca do momento e da forma que a nova legislação acabou por introduzir no regramento jurídico.

Inicialmente quanto ao momento, estamos passando pela maior crise de saúde pública da era contemporânea. Neste sentido uma discussão tão estruturante como uma política pública de saneamento, se efetuada nestes tempos, corre o sério risco de ser rasa e equivocada. Não resta dúvida que o ‘time’ acaba por mitigar a participação da sociedade civil organizada e das entidades de classe constituídas no processo de análise e decisão, o que de fato ocorreu neste caso.

No que pertine a forma, há uma discussão muito mais profunda sobre a correção de uma conduta que abre à iniciativa privada serviços públicos monopolizados, como é o caso do abastecimento de água e do esgotamento sanitário, no Brasil.

Um aspecto que não deve ser descartado, é que ainda temos em nosso país um Estado muito grande, que atua em diversas áreas que não deveria mais atuar. Exemplifica-se aqui os bancos estatais, entre outras empresas públicas com ação em diversas áreas notadamente privadas. Saneamento básico tem foco muito mais público que diversos segmentos que o Estado continuará a ter participação invasiva.

Outro viés que nos faz refletir, é que temos reformas muito mais relevantes que estão na ‘vez’ no Brasil como a tributária e a administrativa entre outras. Alterações essas urgentes e que teriam impactos muito mais decisivos na política de mercado e de governo. Porque então fora escolhido justamente o saneamento básico?

Aqui fica minha intenção de estar enganado.

Contudo, o cenário demonstra, pela redação do PL aprovado, que a busca pela universalização foi a justificativa que se queria ouvir e de certa forma legitima o processo.  

Parece que, na linha do discurso privatista, optamos pela alternativa de conceder à iniciativa privada o filé do saneamento básico, sendo que a carne de pescoço continuará nas costas do Estado (gênero) já pesado e endividado. Tal conduta caminha, de certa forma, na contramão de várias cidades que reestatizaram os serviços ao longo do mundo (Paris, Berlim e Atlanta p. ex.), por diversos motivos diferentes.

No Brasil há o caso de Manaus, prestador privado, com um dos piores indicadores para os serviços que prestam. Ao mesmo tempo, entes públicos como a Sanepar, Dmae (Uberlândia) e a Saesa (São Caetano do Sul) com brilhantes resultados.

Nesta linha, um aperto nos indicadores, controles sociais e principalmente melhor repartição de investimentos públicos e privados, parece-nos que deveria ter sido o caminho a ser seguido. Esta alternativa, de certa forma, otimizaria o cenário construído desde a edição da política do saneamento em 2007. Todavia, esta não foi a escolha.

O resultado desta opção pode ser muito complicado para a população brasileira, que pode vir a pagar mais caro por serviços essenciais e ainda sim, não ver todos seus cidadãos com acesso universalizado aos serviços.

Espero, pelo bem dos brasileiros, estar redondamente equivocado.

Por Diogo Vitor Pinheiro

Advogado, Procurador concursado do SEMASA de Itajaí (SC) desde 2005. Pós-Graduado em Administração Pública pela Univali. Especialista em Direito Administrativo e Licitações pela Universidade Candido Mendes. Mestrando em Políticas Públicas pela Univali. Diretor de Assuntos Jurídicos da ASSEMAE. 

Última modificação em Quinta, 02 Julho 2020 10:51