Benjamin Gestin, diretor geral da Eau de Paris, explica em entrevista exclusiva ao ONDAS por que a capital da França optou pela remunicipalização do serviço de saneamento. Segundo ele, isso foi fundamental para a garantia do direito à água. Além da diminuição da tarifa praticada pelos antigos operados privados, a remunicipalização possibilitou a aplicação de diversos dispositivos sociais, que vão desde a instalação de fontes públicas para acesso da população em situação de rua e refugiados até uma política mais eficaz de investimento em manutenção e renovação da rede. Tudo com a participação da sociedade civil. Confira a entrevista na íntegra:
ONDAS: Quais foram as principais motivações para a remunicipalização dos serviços públicos de abastecimento de água e de criação da empresa pública Eau de Paris em 2009, substituindo as duas concessionárias privadas que operavam a distribuição de água potável na cidade de paris desde 1984?
Benjamin Gestin: O primeiro motivo é o controle da cidade de Paris sobre um serviço que é uma competência municipal. O prefeito de Paris, na época, tinha a impressão de não saber mais o que faziam as empresas concessionárias, de não ter mais controle sobre um certo número de parâmetros da prestação de serviços, sobretudo sobre o parâmetro preço. Foi constatada uma perda de controle por parte dos vereadores, representantes da população e dos próprios cidadãos do serviço púbico de água. A segunda razão é que em Paris a água é considerada um bem comum, um bem essencial e vital que deve ser acessível a todos, em condições aceitáveis. Isso necessita um modo de gestão particular, um modo de gestão que não pode ser pelo setor privado. Era preciso colocar um fim à estrutura que foi implantada em 1986 em que a distribuição havia sido delegada a companhias privadas; a uma separação entre a produção e a distribuição. O município de Paris fez a escolha de integrar produção e distribuição tendo um operador que faz a gestão de todo o sistema de abastecimento de água.
ONDAS: Como é exercido o controle da Eau de Paris pela municipalidade de Paris? Qual a personalidade jurídica da Eau de Paris (empresa pública municipal, empresa mista, autarquia)?
Benjamin Gestin: Eau de Paris tem status de entidade pública de caráter industrial e comercial (établissement public à caractère industriel et commercial ou EPIC), tem uma personalidade jurídica separada da municipalidade de Paris, autonomia orçamentária que permite, por exemplo, ter seu próprio corpo de funcionários, sem ter que recrutá-los entre os funcionários da municipalidade. A relação com o município de Paris é o tipo de relação entre a “autoridade organizadora” e a empresa pública. Isso quer dizer que é o município que escolhe como organiza seu serviço público de água e é o município que vai dar as diretrizes da gestão, que vai escolher o nível de serviços e a qualidade de serviços para o operador atuar. Isso quer dizer que nós temos uma verdadeira autonomia de operador para realizar nosso trabalho e um verdadeiro controle do município de Paris. Todas as informações referentes à operação, custos, gastos, o que é auferido com a operação dos serviços estão disponíveis para a prefeitura de Paris. Essa é uma verdadeira diferença entre Eau de Paris, um operador público e um operador privado que não precisa operar com essa transparência e muitas vezes mascara seus lucros. Um operador público não tem nada a esconder quando a prefeitura de Paris demanda uma informação.
ONDAS: Como a prestação dos serviços é regulada? Que autoridade fixa as tarifas? Com base em que critérios?
Benjamin Gestin: No modelo de prestação de serviços francês não existe a figura do regulador. Isso porque não existe privatização como no modelo “à inglesa”, ou seja, não há privatização completa. O que há é uma delegação da prestação, mas todos os equipamentos pertencem ao ente público (município). O que existe é um controle pela legislação que passa pelas diferentes autoridades públicas, a partir do Estado. São os Ministérios que vão estabelecer as normas de regulação e controlar a sua aplicação: o Ministério da Saúde, com relação à qualidade sanitária da água; o Ministério do Meio Ambiente que vai tratar da qualidade dos recursos hídricos e controlar a quantidade de água captada no meio natural.
ONDAS: Quem fixa as tarifas? E a Eau de Paris leva uma proposta para a Prefeitura, ou ao contrário?
Benjamin Gestin: As tarifas são fixadas anualmente pelo Conselho de Administração de Eau de Paris. Mas as tarifas que vão ser propostas ao Conselho são validadas antes pelo prefeito, considerando que esse é um assunto de caráter bastante político.
ONDAS: Considerando que a gestão do abastecimento de água é um assunto político, como a declaração pela ONU da água e do esgotamento sanitário como direito humano é considerada pela Eau de Paris e pela prefeitura na prestação do serviço? Como é abordado o problema das populações consideradas vulneráveis no que diz respeito ao abastecimento com água potável?
Benjamin Gestin: Esse tema é abordado de diferentes maneiras. A primeira é que desde sua criação Eau de Paris não executa corte de água para os usuários habitacionais, entendendo que o acesso à água para uso doméstico é uma questão vital. Em termos de assistência, existe um certo número de dispositivos sociais que nos permitem contribuir de forma bastante significativa à garantia do direito à água, para que todos os usuários de Paris possam ter acesso. Vou citar alguns.
O primeiro é a tarifa mais baixa de todo o Departamento de Île de France. O preço é bastante acessível, mesmo para as famílias mais modestas. O valor da tarifa baixou 8% desde quando foi feita a municipalização. O valor das tarifas, depois de 10 anos, ficou 20% mais barato do que o das tarifas praticadas pelos operadores privados.
Segundo, a Eau de Paris contribui com 500 mil euros por ano para o Fundo de Solidariedade para a Habitação, que é o programa social no qual se inscrevem as famílias que têm necessidade de um auxílio do Estado para garantir a moradia, e este valor vai subsidiar as tarifas dessas famílias.
Em terceiro lugar, para as pessoas que estão em situação de grande precariedade, e eu me refiro sobretudo aos moradores de rua e aos refugiados que nesse momento são muito numerosos em Paris, o acesso à água se faz por uma rede de fontes públicas que tem uma enorme densidade (1200 fontes mais 40 recém criadas) e é gerida por Eau de Paris, de forma que haja acesso à água em todos os lugares. Em situações muito particulares, como uma concentração de moradores de rua ou de imigrantes, nós levamos e instalamos um sistema com várias torneiras que permite às pessoas terem acesso à água para beber e para sua higiene pessoal.
Nós temos também uma política para as famílias modestas que estejam em habitações sociais ou em habitações particulares para auxiliá-los a economizar água, ajudá-los recorrer aos instrumentos de assistência social de que elas necessitam e a lhes informar sobre a qualidade da água potável disponibilizada. Essa política foi formulada porque nos demos conta de que muitas das pessoas que não consomem a água diretamente da torneira, porque não confiam na sua qualidade, são das categorias de renda mais modestas, e não têm o mesmo nível de informação que as outras. Essa política é colocada em prática em parceria com associações da sociedade civil de apoio social, de educação e inserção.
ONDAS: Qual a diretriz para a renovação do sistema de abastecimento de água potável?
Benjamin Gestin: Em Paris existe uma situação bem particular. A cidade conta com uma rede “histórica”, de 1850/1860, que é uma rede densa instalada na parte superior das galerias que conduzem os esgotos e as águas pluviais. São galerias visitáveis, onde se pode entrar para inspeções e manutenções. Isso implica em problemas – trabalhar dentro da rede de esgotos significa trabalhar em um meio insalubre e potencialmente perigoso para a saúde. Mas também traz um certo número de vantagens; é possível desenvolver uma política de investimentos adaptada. Em outras configurações, não existe alternativa. Para se ter acesso às canalizações e verificar seu estado precisa ser feita uma escavação, situação em que acaba sendo melhor trocar a canalização.
Em Paris foi desenvolvida uma política de investimento racional em que cada euro gasto é justificado porque a natureza da despesa é adaptada a esse tipo de sistema. É necessário renovar para legar às gerações futuras uma rede que esteja em bom estado de funcionamento e não muito velha, mas pode-se também focar na manutenção do sistema, o que permite de prolongar a duração de vida dos equipamentos instalados, gastando menos. Pode-se renovar o que é necessário, mas reduzindo os custos. Isso é a garantia de que a água permanecerá acessível à população mais modesta. A política de investimento, renovação e manutenção contribui também para a diretriz social de acesso à água para todos. Para além das ajudas sociais, é necessário pensar no funcionamento global do sistema, em uma boa utilização dos recursos hídricos e dos recursos financeiros para operar com uma tarifa de água baixa e um serviço acessível a todos.
ONDAS: Como a Eau de Paris considera os riscos de segurança do abastecimento decorrentes das mudanças climáticas?
Benjamin Gestin: Nós somos bastante sensíveis e exigentes com esses dois temas. No que diz respeito à segurança, o sistema de Paris possui uma resiliência construída historicamente. São vários mananciais mobilizados para abastecer a cidade, o que nos permite, quando temos problema em um, recorrermos aos outros. São cinco vetores que têm uma capacidade de produção que é claramente superior à produção média. Seria possível com o sistema existente produzir duas vezes mais água do que é consumido na cidade de Paris. Esse é um primeiro fator de segurança. Um segundo fator de segurança é que Paris se organiza também em função da Região Metropolitana e do Grand Paris e com o território no seu entorno. Nós não estamos sozinhos. Existe notadamente o que se chama sistema de interconexão, que são pontos onde nossa rede de água se comunica com as redes de outros operadores no entorno e que nos permite ajudar uns aos outros em caso de necessidade.
No que concerne às mudanças climáticas, a primeira adaptação é agir para o melhor uso dos recursos hídricos e para economizar água. É uma política que parece natural, mas não é. Para um operador que realiza seu lucro pela venda de água, gastar recursos financeiros para estimular as pessoas a consumir menos não é tão natural. Eau de Paris faz mais esforços nesse sentido que outros operadores, que operam na lógica do lucro.
Como existem várias fontes mobilizáveis para o abastecimento, por exemplo temos um manancial a oeste de Paris que apresentou problemas de redução de nível. Através de estudos hidro meteorológicos é possível antecipar o problema e utilizar menos esse manancial para abastecer Paris e deixá-lo para uso daqueles que necessitam mais.
Temos uma estratégia de proteção dos recursos hídricos que é extremamente ambiciosa, sobretudo através de parcerias com agricultores. Nós procuramos estimular, apoiar e financiar parcialmente os agricultores que se engajam em uma proposta de proteção dos recursos hídricos, utilizando mesmo nitratos e pesticidas, ou mesmo passando à agricultura orgânica e suprimindo completamente os insumos não naturais. Temos então uma série de medidas para proteger os recursos naturais porque, quando se protege os recursos, na sua origem, a montante, é toda a bacia hidrográfica da região parisiense que se beneficia.
ONDAS: Eau de Paris não é responsável pela coleta e tratamento de esgotos? Quem é o responsável pela gestão?
Benjamin Gestin: Para as águas servidas existem dois atores em Paris. A “Section de l’Assainissement de Paris” (SAP) é o departamento municipal que realiza a coleta e o SIAAP “Service Public d’Assainissement Francilien”, também público. O SIAAP é um sindicato interdepartamental, que engloba 4 departamentos (Paris, Haut-de-Seine, Seine Saint Denis e Val de Marne) e 180 “communes” (municípios). Entre os municípios atendidos pelo SIAAP existem aqueles que optaram por um serviço público municipal e os que optaram por delegar os serviços.
ONDAS: Paris possui uma rede de água não potável? Para que serve? Como funciona?
Benjamin Gestin: Esse sistema funciona e é gerenciado separadamente. Ele não é financiado pelos usuários (não é permitido pelo marco legal cobrar algum tipo de taxa sobre a água não potável); mas é financiado pelo seu principal usuário que é a municipalidade de Paris. Essa água tem diferentes usos na cidade de Paris. O primeiro é a limpeza das redes de esgoto, onde ela é injetada para facilitar o escoamento dos efluentes. E também é utilizada pelo serviço municipal de limpeza urbana para a limpeza das ruas. Ela também é utilizada para a rega de jardins e parques.
ONDAS: Qual a instância de planejamento de prestação do serviço (médio e longo prazo e operacional)?
Benjamin Gestin: Todo o planejamento é feito por Eau de Paris. Nós formulamos e propomos as estratégias para médio e longo prazo para a prefeitura de Paris. Em seguida esse planejamento é validado pelo Conselho de Administração. O Conselho de Administração é formado majoritariamente pelos eleitos (vereadores), que formam o Conselho Municipal (Câmara de Vereadores) do município de Paris. São 20 membros, 13 são eleitos do município de Paris.
ONDAS: Quais são os mecanismos de participação e controle de sociedade na gestão da Eau de Paris?
Benjamin Gestin: Existe o Observatoire de L’Eau que é a principal instância de controle social, sendo que um representante deste observatório tem assento no Conselho de Administração e mais dois representantes de associações da sociedade civil também tem assento no Conselho. Os três têm direito a voz e voto. É um modelo que nós não inventamos, mas que destacamos e demos relevo. E é um modelo que vamos reinventar. Eu penso que existem outras formas de participação democrática, notadamente com os recursos da internet e redes sociais, e Eau de Paris tem intenção de investir nessas outras formas de comunicação e participação.
ONDAS: O exemplo de Paris foi seguido por outras municipalidades francesas? A remunicipalização de serviços públicos de abastecimento de água é uma tendência na França? E na Europa?
Benjamin Gestin: Vou colocar em perspectiva o caso da Eau de Paris para deixar claro que não foi a Eau de Paris que inventou essas novas práticas. A onda de remunicipalização na França e na Europa começou antes. O que Paris fez, porque é uma das cidades mais conhecidas do mundo, uma cidade símbolo, uma cidade forte, foi acelerar e intensificar essa onda que desde então tem tido repercussão na França, em diferentes cidades, Montepellier, por exemplo, ou Nice.
Nice é um exemplo que eu gosto de mencionar porque é uma cidade rica e com governos de direita. O prefeito, de um partido de direita, Christian Estrosi, compreendeu como Bertrand Delanoe, antigo prefeito de Paris, que ele não tinha controle sobre os serviços de abastecimento de água. Os serviços foram retomados da empresa privada Veolia e foi criada em 2014 a Eau d’Azur, empresa pública que atende toda a Região Metropolitana de Nice (42 municípios).
Esse movimento de retomada do serviço público também se reflete na Europa. É possível observá-lo por meio de uma Associação que se chama Acqua Publica Europea. Um outro exemplo que pode ser citado é Budapeste que também é uma grande cidade. É um movimento que ocorre, com debate bastante forte em Barcelona e em outras cidades da Catalunha e da Espanha. Este debate também se coloca hoje na Grã-Bretanha que é o país e que foi mais longe no movimento de privatização. Os debates atuais são bastante interessantes, notadamente entre a oposição ao governo nacional.
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