O entusiasmo de entidades empresariais e da mídia com o novo marco regulatório do saneamento aprovado pelo Senado na quarta-feira 24 desvia a atenção de uma característica relevante das regras criadas, o fato de irem na contramão da experiência de políticas públicas para o setor acumulada no País e no resto do mundo.
O marco fixa metas de universalização, estimula a privatização de estatais, estende o prazo para a extinção dos lixões, cancela o modelo atual de contrato entre municípios e empresas estaduais de água e esgoto e obriga à licitação para empresas públicas e privadas. Elimina o subsídio cruzado, em que cidades populosas ajudam a financiar o serviço nas suas áreas mais pobres e nos municípios menores atendidos pela mesma empresa, mas prevê a possibilidade de contratação coletiva de grupos de municípios, mecanismo proposto pela oposição na tentativa de contrabalançar ao menos em parte a extinção do subsídio cruzado.
Segundo a exposição de motivos, o setor de saneamento é monopolizado pelo poder público, com participação da iniciativa privada em apenas 6% dos municípios. A monopolização é atribuída erroneamente, entretanto, à origem do capital, se público ou privado, não às características estruturais da atividade, que constitui um monopólio natural para cada município, critica o economista e consultor do Senado Pedro Garrido. O objetivo de aumentar a concorrência é citado tanto na justificativa quanto no próprio projeto de lei. “É uma questão curiosa”, observa Garrido. “Não há concorrência de redes de esgoto uma com a outra. O que ocorre é a transferência de monopólios do Estado, de empresas estatais ou sociedades de economia mista, para um monopólio privado, que tem a característica de buscar o lucro.”
O novo marco legal, acrescenta, tem desde o início o objetivo de forçar privatizações das empresas de saneamento. O governo federal enfrentava dificuldades para fazê-lo, devido à existência de diversas competências no setor, que funciona com concessões a companhias estaduais e regulamentação feita por empresas municipais. A partir do novo marco, a Agência Nacional de Águas determinará como será a regulação nos estados e municípios. “Apenas receberão recursos e financiamentos da União e de seus órgãos ou entidades aqueles que seguirem as normas de referência da ANA. Essa é uma novidade”, aponta Garrido. A agência, diz, determinará as regras para classificar as empresas quanto à capacidade econômico-financeira, inclusive de endividamento, e dirá quais estão habilitadas ou não. “Como as empresas estatais nos estados dificilmente têm uma capacidade de se endividar elevada, possivelmente podem perder a capacidade de atuar.”
A enorme defasagem entre a disponibilidade de água encanada e tratamento de esgoto e as necessidades da população é evidente, mas atribuir esse abismo à predominância de empresas públicas vai contra a realidade. “O marco atual não é ruim. É relativamente recente e a maioria dos seus instrumentos não foi totalmente efetivada. Os valores investidos em infraestrutura nos últimos 50 anos escancaram o fato de que o saneamento não é prioridade de gastos. Dizer, portanto, que 100 milhões de brasileiros não têm esgoto e 35 milhões ainda não têm água porque o Estado falhou e a iniciativa privada seria a salvação é falacioso”, dispara Vinícius Ragghianti, presidente da Associação Catarinense de Engenheiros Sanitaristas e Ambientais.
Alguns exemplos selecionados ilustram a falácia apontada por Ragghianti. Apenas três capitais, Curitiba, Salvador e Boa Vista, tratam mais de 90% do esgoto e o serviço é realizado por empresas públicas, segundo dados da organização Trata Brasil. A empresa privada Águas de Niterói, responsável pelo saneamento nesse município fluminense, presta serviço com qualidade comparável ao do trio de companhias públicas. O oposto acontece no município paulista de Itu, onde a prefeitura teve de romper o contrato com a empresa privada Águas de Itu e reestatizou o serviço para prestar serviços à altura das necessidades da população. O caso de Belém, com apenas 2,33% dos esgotos tratados pela empresa pública Companhia de Saneamento do Pará, também é grave, assim como a experiência de privatização no Tocantins. “Esse estado foi obrigado a criar uma autarquia estadual para operar 78 municípios não rentáveis excluídos pela empresa privada Saneatins, que só quis ficar com os 47 que eram rentáveis”, ressalta o senador Jean-Paul Prates, do PT do Rio Grande do Norte. A seleção de consumidores segundo a renda em lugar do critério da necessidade de saneamento seria uma das causas da decadência da empresa pública Cedae, do Rio de Janeiro, segundo algumas análises. Historicamente serviu ao modelo excludente de prestação de serviços públicos, que privilegiava áreas mais ricas sobre aquelas de menor renda, e foi engolida por essa distorção, sugere o engenheiro Elvio Gaspar, especializado em planejamento.
A provável combinação do novo marco regulatório com a legislação relacionada ao ajuste fiscal e repactuação de dívida nos estados aumentará, entretanto, a pressão pela privatização. Para obter recursos federais, abater dívida ou entrar no regime de recuperação fiscal é preciso atender a diversas condicionalidades, até mesmo oferecer privatização de empresas estatais, caso da Cedae, que está com o processo paralisado.
Um complicador adicional é a perspectiva de uso de recursos de bancos públicos para financiar as vendas de estatais de saneamento. O expediente foi utilizado em privatizações brasileiras, mas contradiz a justificativa do governo de inexistência de recursos públicos para manter o funcionamento das estatais colocadas à venda.
Os exemplos acima confirmam conclusões de um estudo de 2015 do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, que não encontrou evidências de que determinada forma de propriedade, pública, privada ou mista, é a mais eficiente. O contrário parece verdadeiro, pois a eficiência medida em indicadores de rentabilidade, buscada pelas empresas privadas com cortes de custos e demissões, pode estar relacionada à piora da qualidade de serviços de água e esgoto e redistribuição de renda dos trabalhadores para os acionistas da companhia, destaca um levantamento de 2014 da organização Public and Private Sector Efficiency. Um estudo de 2004 do FMI mostra que os custos de financiamento do investimento feito pelo setor privado são maiores por causa de maiores lucros para os acionistas e do maior risco associado.
Com 78 reversões de privatizações, o Brasil figura em segundo lugar em reestatização no setor de saneamento, abaixo da França, com 106 casos, registrou o Centro Experimental de Saneamento Ambiental da UFRJ com base em levantamento do Transnational Institut, com sede na Holanda. Os motivos recorrentes são tarifas altas, baixos investimentos e insatisfação com a prestação dos serviços oferecidos pela iniciativa privada. No mundo, a TNI mapeou 267 casos de reestatizações desde 2000, a maior parte em países desenvolvidos.
A falta de transparência na argumentação em defesa da participação de empresas privadas no saneamento é inegável. A experiência mundial de privatização no setor mostra um aumento significativo dos dividendos distribuídos aos acionistas, mas revela também a estagnação dos investimentos indispensáveis à prestação de serviços adequada. Outra prática constante é o aumento das demissões, que infla resultados financeiros, mas prejudica os serviços por causa da perda do controle centralizado do pessoal, indica o caso da privatização do setor elétrico no País, sucedida por apagões. “O setor privado pode ter uma atua ção positiva, mas só com uma regulação bem-feita, para que haja retorno claro para a sociedade e não ocorra um aumento grande de tarifas, como foi o caso das taxas de energia elétrica, que aumentaram sucessivamente e muito acima da inflação, depois do processo de privatizações na década de 1990, mesmo sem um aumento relevante nos investimentos”, alerta Garrido.
Fonte: Portal Carta Capital