A professora de Direito da UFPE, Maria Lúcia Barbosa, destaca a vulnerabilidade da população pobre do Brasil diante da pandemia de Covid-19, o que, segundo ela, comprova a ausência estatal no cumprimento de direitos básicos. Leia o artigo abaixo:
Os direitos sociais, a crise da Covid-19 e a morte anunciada
A atual crise sanitária nos revela, no sentido real da palavra, as contradições sociais nas quais sempre estivemos mergulhados em um país marcado por desigualdades que se perpetuam e se aprofundam constantemente.
Não por acaso, os grupos sociais mais vitimados pela Covid-19 são aqueles que vivenciam uma condição de subcidadania, já que os direitos fundamentais básicos como saúde, trabalho, salário, saneamento e educação não lhes são assegurados, ainda que o Estado brasileiro tenha assumido tais compromissos no artigo 6º do texto constitucional de 88.Os dados ainda que recentes são indicativos de que o agravamento no número de casos de Covid-19 e no número de mortes pela enfermidade têm um perfil social, de gênero e racial, de modo que a doença atinge as pessoas que residem em áreas de maior vulnerabilidade social, pobres, mulheres, pretos e pardos.
A parcela da população que mais sofre contágio pelo coronavírus reside em habitações nas quais o isolamento social não é possível porque são áreas exíguas não assistidas por serviços básicos como saneamento, energia elétrica e água. Segundo dados do IBGE de 2019, cerca de 18,4 milhões de pessoas não têm água potável e 35,7% não têm tratamento de esgoto em suas residências. Desse modo, as recomendações da Organização Mundial de Saúde são impossíveis de serem seguidas por uma parcela significativa da população brasileira mais vulnerável socioeconomicamente e ao vírus.
Entre os trabalhadores, as mulheres, que se ocupam majoritariamente da função do cuidado, seja no trabalho doméstico ou no trabalho assalariado, estão mais suscetíveis à doença. São as mulheres negras a maioria das empregadas domésticas que foram as primeiras vítimas fatais da Covid-19 no Brasil. As mulheres também são maiorias entre as enfermeiras, técnicas de enfermagem e auxiliares de limpeza que trabalham em hospitais expostas substancialmente ao risco de contágio. Portanto, há de se considerar que mulheres, sobretudo as negras e pobres, têm maior chance de contágio e morte por Covid-19.
A pandemia não vitima as pessoas de forma indiscriminada, há cidadãos e cidadãs que podem se proteger, seja no trabalho remoto, seja porque podem seguir as recomendações de autoridades de saúde e estão salvaguardados por legislação social, e outros que necessariamente se arriscam, já que executam trabalhos informais, precários e mais arriscados.
Fazer a leitura dessas circunstâncias é fundamental para compreensão de que a colonialidade é responsável pelo recorte de classe, raça e gênero que vitima de morte mais de 140 mil pessoas atualmente no Brasil. Por colonialidade, quase um elemento constitutivo do Estado brasileiro, entende-se a perpetuação de características marcantes da estrutura colonial de poder, uma espécie de DNA colonial que atravessa o tempo e ainda se encontra visível nas discriminações transversais.
A colonialidade diz respeito a um fenômeno histórico complexo que se estende até os dias de hoje e se refere a um padrão de poder que opera através da naturalização de hierarquias territoriais, raciais, culturais e epistêmicas, as quais possibilitam a reprodução de relações de dominação, que ensejam a exploração pelo capital dos seres humanos em escala global, como nos advertem Enrique Dussel, Aníbal Quijano, Walter Mignolo, entre outros autores do chamado giro descolonial. Continuamos vivendo "sob a égide da matriz colonial de poder que denota que embora o colonialismo tenha chegado ao fim, é a colonialidade que marca as relações de poder contemporâneas".
Essa compreensão da existência e permanência da colonialidade possibilita o reconhecimento dos processos de exclusão de grupos sociais subalternizados até os dias atuais e a Covid-19 é mais uma predisposição iminente de morte em massa dessas pessoas no Brasil. Os resquícios, as continuidades das relações coloniais e as suas diferentes formas contemporâneas de reprodução e manifestação são determinantes para a compreensão dos níveis de injustiças estruturais, econômicas e sociais. A invisibilização de mortes de cidadãos privados de direitos sociais evidencia que as vidas dos sujeitos da zona do não ser são menos importantes, embora formalmente a proteção à vida humana seja uma garantia constitucional.
Boaventura Santos enumera que aspectos da pedagogia do vírus, nos remetendo a uma possibilidade de aprendizado nessa crise pandêmica, que a colonialidade (colonialismo) e o patriarcado estão vivos e reforçam-se, eis que os corpos racializados e sexualizados são sempre os mais vulneráveis, o que nos lança o questionamento sobre como sairemos dessa crise. Se mais conscientes do papel do Estado, sobretudo do papel central do poder executivo, na promoção de políticas publicas que assegurem a fruição de direitos sociais por todos, numa postura de defesa do Estado forte e promotor de direitos, ou se sairemos ainda mais individualistas e preocupados apenas com nossas vidas e direitos individuais, que permitem a alguns cidadãos usufruir de direitos básicos como trabalho, renda, moradia, alimentação sem se expor ao risco de contágio.
O número de mortes por Covid-19 no Brasil é sintomático e comprova que a ausência estatal no cumprimento de direitos básicos é uma causa significativa dessa tragédia vivenciada por muitas famílias que sequer puderam se despedir dos seus entes queridos. Cada pessoa que vive ou já viveu o luto sabe que esse processo é dilacerante e deve ser ainda mais doloroso quando compreendemos que as perdas poderiam ter sido evitadas com uma postura responsável e atuante por parte dos agentes de Estado. Espero que entre as lições que o vírus lamentavelmente nos trouxe estejam a de que necessitamos de um Estado mais atuante e responsável no cumprimento da constituição, sobretudo no tocante aos direitos sociais.
Por: Maria Lúcia Barbosa - professora adjunta da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), membro do Grupo de Pesquisa REC (Recife Estudos Constitucionais), secretária da Comissão de Estudos Constitucionais e Cidadania da OAB-PE e doutora em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
Fonte: https://www.conjur.com.br/2020-set-05/barbosa-direitos-sociais-covid-19-morte-anunciada
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