A nova Lei 14.026/20 apresenta diversos dispositivos inconstitucionais que interferem na autonomia dos municípios. Conforme explica o professor de Direito da USP, Gilberto Bercovici, a Lei extrapola a competência da União e confunde a gestão de recursos hídricos com a prestação dos serviços de saneamento básico. Leia abaixo:
As inconstitucionalidades da nova lei do saneamento
A Constituição de 1988 menciona o saneamento básico em alguns dispositivos, notadamente os artigos 21, XX, 23, IX, e 200, IV. As diretrizes nacionais da política de saneamento básico devem ser estipuladas pela União (artigo 21, XX, da Constituição de 1988), o que foi configurado por meio da Lei nº 11.445, de 5 de janeiro de 2007, agora alterada pela Lei nº 14.026, de 15 de julho de 2020.
A Lei nº 14.026/2020 introduz várias alterações nas competências da Agência Nacional de Águas (ANA), renomeada para Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico. A pretensa abrangência da atuação da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico como órgão com competência de instituir normas de referência para a regulação dos serviços de saneamento básico seria contestável pelo fato de buscar atuar em matérias de competência municipal (saneamento básico — artigo 30, V, da Constituição). A delegação da regulação do serviço público de titularidade dos municípios para um ente autárquico federal pode ser contestada, ultrapassando a possibilidade prevista nos artigos 21, XX, e 24, §1º, da Constituição de 1988.
A única hipótese possível, no caso do saneamento básico, seria a prevista nos artigos 8º, 9º, II, 15, I e 23, §1º, da Lei nº 11.445/2007: a delegação expressa para outro ente da federação da fiscalização, não da regulação, do serviço público de saneamento básico por parte de seu titular, o município. Sem delegação expressa de cada um dos municípios, a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico não tem competência para atuar na fiscalização do serviço público de saneamento básico. Mesmo assim, a inovação do artigo 23, §1º-A e §1º-B, da Lei nº 11.445/2007, introduzido pela Lei nº 14.026/220, pode ser contestado por violar a estrutura federativa (artigos 18, 19, III, e 25, §3º, da Constituição de 1988) e a atuação conjunta dos entes federados no tocante ao saneamento básico (artigo 23, IX).
Há, aqui, nessa ampliação de competências do órgão autárquico federal uma nítida confusão entre o serviço de saneamento básico e a gestão de recursos hídricos (artigo 12, caput, da Lei nº 9.433, de 8 de janeiro de 1997, e artigos 2º, XII, e 4º da Lei nº 11.445/2007). São duas etapas distintas, dois serviços públicos distintos. A água é a matéria-prima do serviço de saneamento, mas são serviços de titularidades distintas: as águas são de titularidade da União (artigo 20, III, da Constituição) ou dos Estados (artigo 26, I, da Constituição). Portanto, o ente responsável pela outorga da utilização dos recursos hídricos é a União ou o Estado. O município é o ente titular da prestação dos serviços de saneamento, não é titular dos recursos hídricos.
O saneamento básico é definido constitucionalmente e legalmente como um serviço público. Ou seja, o ente responsável pelo serviço pode prestá-lo diretamente ou por meio de concessão ou permissão (artigo 175, caput, da Constituição). A Lei nº 14.026/2020 ignora a possibilidade da prestação direta e busca inviabilizar a atuação estatal no setor, privilegiando a concessão para o setor privado.
No caso dos serviços públicos, como o saneamento básico, a concessão de direitos exclusivos justifica-se em virtude das dificuldades de produzir um bem ou serviço por mais de um agente econômico. Trata-se de um monopólio natural concernente a bens coletivos em que o uso individual não reduz as possibilidades de consumo por parte de outros agentes. São bens de interesse geral que implicam em intervenção pública e na instituição de um monopólio legal. Além disso, pressupõem o emprego do domínio público (no caso, as águas), o que limita o número de operadores.
O poder público, em qualquer de seus níveis federativos, não é obrigado a solicitar a colaboração do setor privado, deixando, assim, de atuar com meios próprios ou de outro ente da federação. Quando a Administração Pública desempenha determinada atividade ou presta determinado serviço utilizando meios próprios ou de outro ente da Federação (os "contratos de programa","“operações in house" ou "in house providing") não se aplica a legislação sobre licitações. Nesse sentido, a legislação brasileira (artigo 24, XXVI, da Lei nº 8.666/1993) permite a dispensa de licitação nos casos em que um ente da federação celebre contrato de prestação de serviços públicos com outro ente ou órgão da sua Administração indireta (como uma sociedade de economia mista).
A Lei nº 14.026/2020, ao alterar a redação dos artigos 8º, §1º, II, e 10 da Lei nº 11.445/2007, determina a proibição dos "contratos de programa" no setor de saneamento básico, violando não só as possibilidades de atuação direta determinadas pelo artigo 175, caput, da Constituição de 1988, como comprometendo a atuação conjunta dos entes da Federação prevista no artigo 23, IX, da Constituição de 1988.
Não bastassem essas medidas, o governo federal impôs, ainda, uma série de exigências para o financiamento do setor de saneamento básico (artigo 4º-B, §2º, da Lei nº 9.984/2000; artigo 50 da Lei nº 11.445/2007 e dispositivos da Lei nº 13.529, de 4 de dezembro de 2017, todos com a redação introduzida ou alterada pela Lei nº 14.026/2020). Contrariando totalmente a autonomia política dos municípios, a União exigiu que eles se adequem à sua política de privatizações, privilegiando a concessão dos serviços ao setor privado ou as parcerias público-privadas, desestimulando a prestação direta do serviço público. Dessa forma, todos os municípios que buscarem recursos para o setor de saneamento são obrigados a concordar com a abertura do setor aos agentes privados. A relação que deveria ser de coordenação torna-se uma relação de subordinação, violando o pacto federativo.
A Lei nº 14.026/2020 viola, ainda, o artigo 241 da Constituição de 1988, ao esvaziar, por meio de lei ordinária (alteração da redação do artigo 8º, §1º, I e II, da Lei nº 11.445/2007), o conteúdo da gestão associada de serviços públicos prevista constitucionalmente, restringindo os consórcios à esfera intermunicipal e limitando-os ao financiamento das iniciativas de implementação de medidas estruturais. A referida lei instaura, ainda, a possibilidade de agrupamento por lei ordinária de municípios não limítrofes por determinação dos Estados ou da União (artigos 3º, VI, "b" e "c", e 52, §3º, da Lei nº 11.445/2007, com a redação alterada pela Lei nº 14.026/2020), indo além da competência constitucionalmente atribuída exclusivamente aos Estados-membros no artigo 25, §3º, da Constituição, bem como ultrapassando a hipótese constitucionalmente prevista de atuação regional da União no artigo 43 da Constituição.
Este levantamento prévio e não exaustivo dos dispositivos da Lei nº 14.026/2020 já consegue demonstrar a sua inconstitucionalidade e os graves prejuízos ao setor de saneamento básico e à própria estrutura cooperativa da federação brasileira que poderão decorrer de sua eventual aplicação.
Autor: Gilberto Bercovici - advogado, professor titular de Direito Econômico e Economia Política da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e professor nos programas de pós-graduação em Direito da Uninove e do Mackenzie.
Fonte: https://www.conjur.com.br/2020-set-27/estado-economia-inconstitucionalidades-lei-saneamento
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