09 de Março, 2015

A falta de água em São Paulo

Artigo de Edson Aparecido da Silva, coordenador da Frente Nacional pelo Saneamento Ambiental, e do sociólogo Ricardo Guterman

Por Edson Aparecido da Silva e Ricardo Guterman*

Educar as pessoas para que mudem seus hábitos em relação ao consumo de água é salutar, mas existe uma grande diferença entre conscientizar e responsabilizar, mesmo subliminarmente, o cidadão pela ameaça de racionamento.

O risco iminente de racionamento no fornecimento de água que se vive hoje na Região Metropolitana de São Paulo (RMSP) está relacionado aos baixos níveis de armazenamento de água nas represas do sistema Cantareira, que estavam com apenas 16,9% de sua capacidade em 25 de fevereiro, o mais baixo desde sua instalação. O fenômeno decorre do regime de chuvas atípico neste verão, muito abaixo das médias históricas, e das altas temperaturas que provocaram o aumento do consumo. A possibilidade de racionamento, porém, é consequência também de problemas estruturais no conjunto do sistema de abastecimento, que opera sem nenhuma margem de segurança para fazer frente a eventos climáticos adversos.

O sistema Cantareira é o mais importante da RMSP, fornecendo 33 mil litros de água por segundo (33 m³/s), que abastecem cerca 8,1 milhões de pessoas da zona norte, central, partes das zonas leste e oeste da capital, bem como os municípios de Franco da Rocha, Francisco Morato, Caieiras, Osasco, Carapicuíba e São Caetano do Sul, além de parte dos municípios de Guarulhos, Barueri, Santana do Parnaíba e Santo André, o que corresponde a 44% da população da região metropolitana.

As águas que formam o sistema Cantareira são, na maioria, provenientes das bacias hidrográficas dos rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí (PCJ). Algumas nascentes estão localizadas no estado de Minas Gerais, o que resulta na necessidade de autorização (outorga) federal para derivação dessa água das bacias de origem para a bacia do Alto Tietê, que equivale, aproximadamente, à RMSP. A outorga, que vence em agosto de 2014, quando precisará ser revista, prevê a reversão de 33 m³/s, restando 5 m³/s na bacia do PCJ.

A Sabesp é a responsável pelo fornecimento da quase totalidade de água para a RMSP, faz a distribuição no varejo em 32 municípios, inclusive a capital, e seis cidades compram água no atacado (Santo André, Diadema, São Caetano do Sul, Guarulhos, Mogi das Cruzes e Mauá). Santa Isabel tem sistema próprio.

A empresa, conforme informa em seu site, fornece 67 m³/s provenientes de oito sistemas de produção, que consistem na reservação, captação, transporte e tratamento, e atendem cerca de 20 milhões de pessoas. Essa produção de água, porém, é insuficiente. Para ampliar a oferta está sendo instalado, por meio de parceria público-privada (PPP), o sistema São Lourenço. Com captação em Ibiúna, a água percorrerá a distância de 83 quilômetros, e a produção, daqui a três anos, será de 4,7 m³/s.

Segundo o Relatório de Impacto Ambiental desse projeto, o Sistema Integrado de Abastecimento de Água da RMSP operou em 2010 com disponibilidade de 68,1 m³/s, inferior à demanda média estimada de 69,6 m³/s, ou seja, garantia de 95%. Só não faltou água porque a situação hidrológica era favorável e os sistemas produziam além de sua capacidade nominal. Ainda segundo o estudo, a diferença entre disponibilidade e demanda pode chegar em 2015 a um déficit estimado entre 3,4 m³/s e 5,8 m³/s.

Isso explica a crônica falta de água ou a intermitência no seu fornecimento, em quase todos os verões, nos bairros da RMSP situados em altitudes mais elevadas, naqueles que tiveram maior adensamento populacional e nas regiões de expansão e ocupação mais recente.

Os atuais problemas relacionados ao abastecimento de água da RMSP não se restringem à alta do consumo em razão das elevadas temperaturas e à falta de chuvas. Há graves problemas estruturais que não foram e não estão sendo enfrentados por omissão da Sabesp e do governo do estado.

A forma como a região se desenvolveu é outra grande causa dessa situação. A falta de planejamento metropolitano integrado, as ocupações de áreas de mananciais e de várzeas por ausência de política habitacional adequada, os baixos índices de coleta e tratamento dos esgotos que são despejados in natura nos córregos e rios, a carência de investimentos na busca de novas fontes de abastecimento e a ausência de planos de contingência para atendimento da demanda em situação de crise interferem de forma significativa nos problemas de abastecimento de água.

Nesse cenário, toda e qualquer ocorrência fora dos padrões normais gera crises, previsíveis, que poderiam ser mais bem enfrentadas ou até mesmo evitadas por medidas preventivas. Em razão da baixa disponibilidade hídrica na bacia do Alto Tietê, a gestão da água deve ir além da RMSP e abranger toda a macrometrópole paulista, que inclui, entre outras áreas, o Vale do Paraíba, Sorocaba, a Baixada Santista e Campinas.

Campanhas para a redução do consumo de água são positivas e deveriam ser permanentes, isto é, ser veiculadas não apenas em momentos de crise, independentemente se a diminuição do faturamento, por causa da economia de água, possa afetar a rentabilidade da Sabesp, que é uma empresa de economia mista, controlada pelo Estado, porém, com metade das ações negociadas no mercado, inclusive na Bolsa de Nova York. A companhia obteve lucro líquido de R$ 1,9 bilhão em 2012 e receita líquida de R$ 10,7 bilhões.

Trata-se de medida tardia lançar uma campanha publicitária quando já estamos à beira do colapso. Além disso, o desconto oferecido aos usuários abastecidos pelo sistema Cantareira deveria ser estendido a toda a região metropolitana, já que a economia nos demais sistemas pode possibilitar o envio da água poupada para parte da área abastecida pelo Cantareira. A explicação para essa medida não ter sido estendida para toda a RMSP é, novamente, a mesma: reduzir consumo e tarifa significa cortar receita e, consequentemente, lucro.

Educar as pessoas para que mudem seus hábitos em relação ao consumo de água é salutar, mas existe uma grande diferença entre conscientizar e responsabilizar, mesmo subliminarmente, o cidadão pela ameaça de racionamento. Ainda mais por parte de uma empresa que opera com elevadas perdas de água.

A primeira condição para a Sabesp pedir que a população economize água é ela própria evitar o desperdício. Infelizmente não é isso que acontece. A Agência Reguladora de Saneamento e Energia de São Paulo (Arsesp), que tem a atribuição de fiscalizar a Sabesp, apurou que no caminho entre os reservatórios e os domicílios as perdas de água foram de 31,2% em 2013. Para cada 100 litros retirados das represas, menos de 70 chegam ao seu destino. Tão grave quanto essa perda de água, suficiente para abastecer a população da cidade do Rio de Janeiro, segunda maior cidade do país, é a manipulação de números praticada pela Sabesp, que divulga 24% como o índice de perdas na região metropolitana, ou seja, sete pontos percentuais a menos. 

A grande mídia, com seu poder de inserção, também cria um sentimento de culpa e responsabilidade sobre a dona de casa e o cidadão comum pelos problemas no abastecimento. Desempenharia papel mais relevante se trouxesse para o debate questões que abordassem, por exemplo, a questão das perdas e os problemas estruturais do sistema para criar um sentimento na opinião pública que obrigasse os verdadeiros responsáveis a tomar providências de mais longo prazo.

“Há males que vêm para bem”, diz o ditado. Esperamos que essa crise no abastecimento de água que afeta a RMSP, a principal do país, as demais regiões do seu entorno que integram a macrometrópole paulista e parte do interior sirva para fazer que o Estado e a sociedade deem a devida importância ao tema.

 

*Edson Aparecido da Silva é sociólogo, coordenador da Frente Nacional pelo Saneamento Ambiental (FNSA) e assessor de saneamento da Federação Nacional dos Urbanitários (FNU/CUT). E Ricardo Guterman é sociólogo.

 

Última modificação em Quarta, 27 Julho 2016 16:08
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