Em artigo da Fiocruz, pesquisadoras do Departamento de Saneamento e Saúde Ambiental destacam que a nova Lei 14.026/20 não apresenta soluções para resolver o saneamento básico em regiões pobres e irregulares. Pelo contrário, com a maior participação da iniciativa privada no setor, as alterações devem aumentar as tarifas de água e esgoto, além de ampliar a desigualdade social. Leia o texto abaixo:
Saneamento não admite excluídos
A bandeira de que todos devem ter acesso a saneamento é antiga. Isso implica que não devemos deixar ninguém para trás, independente de renda, de lugar onde mora e até de quem não tem casa. Todos deveriam ter acesso a banheiro e água e, é claro, todo esgoto deveria ser tratado. Por quê? Essas medidas não só garantiriam melhores níveis de saúde para todos, mas também iriam reduzir o número de mortes (principalmente entre mais velhos e crianças) e o risco de surtos de doenças, garantir a balneabilidade de rios e praias – além de reduzir a desigualdade.
Somos um dos países mais desiguais do mundo, o saneamento mostra isso. Quanto mais pobre, maior a chance de os indivíduos não terem acesso a bons serviços, como abastecimento de água, coleta de esgoto e coleta de lixo. Também aumenta a chance de, em locais alagadiços, serem afetados por enchentes. A ausência de saneamento explicita também o racismo estrutural marcado pelo acesso diferenciado entre pessoas brancas e não brancas. O acesso a abastecimento de água por rede, segundo o censo de 2010, que garante uma melhor qualidade no serviço, mostra essa diferença: Enquanto 85% dos brancos têm o serviço, entre a população preta e parda o acesso é de 77%. A diferença é, em números absolutos, de 2 milhões de pessoas, segundo o IBGE (2010). Ainda de acordo com o mesmo censo, 36,1% dos domicílios cujo responsável se declarou indígena não possuem banheiro. Nos domicílios com responsável não indígena o número cai para 6,6%.
Por isso entendemos a falta de saneamento como um problema complexo, que não será resolvido com ações que não ataquem suas raízes. Não se trata somente de fazer alterações na lei do saneamento. Segundo o Plano Nacional de Saneamento Básico (Plansab), deveríamos alcançar a universalização dos serviços em 2033, mas como diminuíram os investimentos a cada ano e a cada governo, essa projeção foi adiada para 2060, de acordo com a Confederação Nacional da Indústria (CNI). E não são só linhas de financiamento efetivas que faltam. Falta pensar fora da economia de escala, já que os grandes sistemas não conseguem atingir a todos, principalmente os que moram em locais altamente adensados, onde a urbanização é diferenciada, como as favelas, ou onde a densidade habitacional é baixa, como as áreas rurais. Para estas populações, que representam hoje os setores que menos têm acesso a saneamento, são necessários modelos e tecnologias que se adaptem a sua realidade e não o contrário. O novo marco propõe resolver os problemas do saneamento com o aumento da participação de empresas privadas na prestação dos serviços. Contudo, a presença de empresas privadas já estava prevista na política nacional de saneamento de 2007. O novo marco, ao praticamente obrigar os municípios a realizarem licitação, no caso de terem contratos de programa com as concessionárias estaduais, torna oportuna a participação privada nos municípios que geram melhores lucros. As privatizações no estado de Tocantins e na cidade de Manaus mostram como este modelo não garante melhorias do serviço. Em nenhum lugar do mundo a universalização foi feita por investimento privado, somente com recursos públicos. Por que aqui seria diferente?
Reivindicamos que o saneamento seja para todos; saneamento não admite excluídos e, do ponto de vista da saúde, é de interesse de todos que todos tenham acesso. Infelizmente, o novo marco não garante isso, ao não apresentar ferramentas que visem este objetivo. No mundo, o acesso à água e ao saneamento é considerado direito desde 2010. É uma ferramenta para reduzir a desigualdade, é um caminho para uma vida mais saudável para todos. Os desafios são muitos e o caminho é longo. Ele parte de se entender que a relação entre a água e a vida é tão intrínseca que não deve ser cerceada. Assim, tratar a água como uma mercadoria, onde as pessoas só terão acesso mediante pagamento, ou se cumprirem alguns requisitos para serem liberadas de pagar, é pouco e é perigoso.
Somos um país que tem 52 milhões de pessoas abaixo da linha da pobreza, número que tende a aumentar diante do desemprego e da recessão prevista por causa da pandemia de covid-19. A garantia de serviços básicos para estas pessoas deveria considerar o saneamento, e pensar em soluções mais solidárias e menos mercadológicas. Infelizmente ainda se corta o serviço de água mediante a falta de pagamento. Acreditamos que com a maior participação das empresas privadas no setor, essa prática será ampliada, além do risco de aumento das tarifas. Por isso defendemos que água é vida e não mercadoria!
Autoras: ADRIANA SOTERO MARTINS, BIANCA DIEILE DA SILVA E MARIA JOSÉ SALLES - Pesquisadoras do Departamento de Saneamento e Saúde Ambiental da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz)
Fonte: https://www.arca.fiocruz.br/bitstream/icict/43184/2/SaneamentoExcluidos.pdf
Imagem: Internet