Mesmo sendo o país com as maiores reservas de água doce do mundo, o Brasil ainda tem graves problemas quando o assunto é saneamento básico. Segundo dados do Sistema Nacional de Informações sobre o Saneamento (SNIS), quase 35 milhões de brasileiros ainda não têm acesso à água tratada. Aqueles que não possuem acesso à coleta de esgoto são ainda mais: aproximadamente 100 milhões.
Sem a coleta adequada de esgoto, substâncias tóxicas são despejadas em rios e nascentes continuamente em vários locais do país – o que, além de prejudicar o meio ambiente –, causa milhares de internações e mortes todos os anos. Em 2018, o país registrou mais de 230 mil internações por doenças de veiculação hídrica, como gastroenterite, febre tifóide e cólera. Mais de 2 mil pessoas morreram nesse mesmo período vítimas de doenças desse tipo.
Em audiência pública no Congresso em junho, o ministro Rogério Marinho (Desenvolvimento Regional) disse que seria preciso investir R$ 700 bilhões para atender às demandas de saneamento no Brasil – algo que seria inviável sem a participação da iniciativa privada, segundo ele. Ele afirmou que o governo federal, junto com os governos estaduais e municipais só têm capacidade de investir R$ 7 bilhões por ano no setor.
O aumento dos investimentos foi o principal argumento do governo para aprovar o novo Marco Legal do saneamento, em 2020. O assunto foi debatido por anos e enfrentou grandes resistências de associações ligadas à defesa dos serviços públicos. Isso porque a lei permite a privatização de empresas públicas de saneamento.
Desde a sanção da nova lei, quatro leilões de concessão foram realizados, totalizando mais de R$ 61,3 bilhões em investimentos. O principal objetivo da legislação é garantir, até 2033, que 99% da população brasileira tenha acesso à água potável e 90% ao tratamento e à coleta de esgoto.
Para Guilherme Fernandes Marques, professor do Instituto de Pesquisas Hidráulicas (IPH) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), o Marco de Saneamento traz elementos positivos que vão ajudar a melhorar a cobertura de saneamento no país. Ele acredita que a ampliação da coleta de esgoto deve ser prioridade. “Não temos mais condições de lançar esgoto nos rios em pleno século 21. Essa poluição hoje já está afetando a disponibilidade de água para municípios vizinhos, e isso é inaceitável. Coletar e tratar esgoto é hoje uma questão de segurança hídrica”, afirma.
Marques também acredita que é necessário capacitar as empresas municipais para que estas prestem o melhor serviço possível. “Os principais desafios são a grande carência e falta de suporte técnico a nível municipal. Muitos municípios nem sequer têm planos de saneamento. Outro desafio é viabilizar investimentos em localidades menores, onde a arrecadação com as tarifas pelo serviço é pequena. É preciso um arranjo que permita a solidariedade financeira entre regiões com alta e baixa arrecadação”, disse.
A capacitação de empresas públicas municipais de saneamento é uma das atividades realizadas pela Associação Nacional dos Serviços Municipais de Saneamento (Assemae), que se colocou contra o novo Marco Legal do saneamento e acredita que a lei sancionada em 2020 é um retrocesso.
“Não existe um novo marco legal, isso é balela do novo governo. Não foi aprovado nem um marco. A lei de 2007 é um marco. A nova lei foi uma atualização no sentido de direcionar a prestação dos serviços de saneamento para um único modelo. O governo trabalha no sentido de entregar o saneamento para o setor privado. Nós fomos contra e fomos ao STF apontando inconstitucionalidades. Defendemos a titularidade dos municípios”, afirma Aparecido Hojaij, presidente da associação.
“Não é uma lei que vai universalizar o saneamento. Não é a privatização que vai resolver essa questão. O marco legal sempre existiu e tivemos grandes avanços em 2007. E um dos fatores principais para atingirmos uma eficiência é um programa de assistência técnica que capacite os operadores de serviço, coisa que o governo não tem”, pontua.
Ele também afirma que os investimentos da União no setor foram diminuindo ano após ano, o que praticamente impossibilitou o avanço pela universalização. Hojaij argumenta que, no caso da lei, não se pode esperar que os investimentos da iniciativa privada resolvam o problema. “É balela dizer que o setor privado vai investir no saneamento. Nos casos de leilão, como o caso da Cedae, um dos pontos de desinteresse foi os locais mais pobres. Eles não vão investir num lugar que não tenha retorno”, opina.
Já Édison Carlos, presidente executivo do Trata Brasil, discorda do argumento. Ele explica que a lei favorece a regionalização, ao obrigar estados a montarem blocos regionais contendo tanto os municípios grandes quanto os menores. “As empresas que ganham [as licitações] têm que operar tanto nos municípios grandes quanto pequenos. Foi uma forma encontrada na lei para não deixar de fora os pequenos. Essa era a principal crítica de quem era contra. A gente acredita que com o novo Marco Legal a ampliação vai ter um impulso que não teve até hoje”, pontua.
Ele afirma que há, no Brasil, diversas empresas públicas municipais de qualidade, mas afirma que também existem aquelas que prestam serviços ruins. “Com o novo marco legal, todas as companhias têm que comprovar até 2022 que têm recursos financeiros para fazer investimentos nos municípios para atingir as metas do Marco Legal. Se não tiver, vai ter que abrir licitação para outra empresa operar”.
Carlos comenta que o país teve poucos investimentos entre as décadas de 1980 e 2000 e destaca que 35% de tudo o que o Brasil investe em saneamento está concentrado no estado de São Paulo. “Mesmo o estado que mais avançou é o que mais investe”, diz ele.
Segundo o Ranking do Instituto Trata Brasil/GO Associados com base em informações do SNIS, sete municípios do estado de São Paulo estão entre os 10 melhores do país quando o assunto é saneamento. Santos (SP) lidera a lista, que tem 100 municípios. Já os piores do ranking são Macapá (AP), Porto Velho (RO) e Ananindeua (PA).
O presidente do Trata Brasil frisa que só através de esforços conjuntos entre o setor público e privado será possível universalizar o saneamento no país. “O déficit de saneamento é tão grande no Brasil que precisa de um esforço conjunto. Só empresas privadas não resolvem e só empresas públicas também não. Na região norte, por exemplo, tem apenas 10% de coleta de esgoto. E tem empresas lá desde a década de 1970. Os esgotos acabam indo para os rios. Então estamos falando em recursos na ordem de R$ 600 bilhões para resolver isso”, completa.
Fonte/Texto: Correio Braziliense
Foto: Arquivo Assemae