Saneamento em áreas urbanas irregulares: qual o caminho?
Por Elisandro de Oliveira*
De acordo com o censo de 2010, o Brasil possuía aproximadamente 11,42 milhões de pessoas morando em favelas, palafitas ou outros assentamentos irregulares. O número correspondia a 6% da população do país naquele momento . A comparação com o levantamento realizado há 20 anos indica que quase dobrou, no período, a proporção de brasileiros que moram nessas áreas, em condições precárias. Em 1991, este montante somava 4,48 milhões de pessoas (3,1% da população) em assentamentos irregulares. Trata-se de um fenômeno majoritariamente metropolitano – 88,2% dos domicílios em favelas estavam concentrados em regiões com mais de 1 milhão de habitantes, que correspondem a 20 regiões no país.
As regiões metropolitanas de São Paulo, Rio e Belém, somadas, concentravam quase a metade (43,7%) do total de domicílios em assentamentos irregulares do país, sendo que, em Belém, mais da metade da população vivia em assentamentos irregulares em 2010.
Do total de 6.329 aglomerados no Brasil, 32,7% ainda não tinham acesso adequado à rede de esgotamento sanitário - serviço básico com o menor grau de adequação nos domicílios em aglomerados subnormais, sendo que 88,3% dos domicílios nessas áreas possuíam rede de distribuição de água potável.
Em nível mundial, a ONU já reconheceu o acesso à água potável como direito humano fundamental desde julho de 2010. Agora, uma nova resolução da sua Assembleia Geral, de dezembro de 2015, reconheceu o saneamento básico como um direito humano separado do direito à água potável. A decisão pretende chamar a atenção para a necessária perspectiva de universalizar o saneamento, ainda que mais de 2,5 bilhões de pessoas no mundo vivam sem acesso a sanitários e sistemas de esgoto adequados, representando quase 40% da população mundial, boa parte deste total em áreas irregulares.
De outra forma, a Campanha da Fraternidade Ecumênica de 2016, ao trazer para o debate público o tema “Casa Comum, nossa responsabilidade” com o lema bíblico “Quero ver o direito brotar como fonte e correr a justiça qual riacho que não seca”, também foca no saneamento básico em áreas de ocupações irregulares. Segundo dados do SNIS – Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (2013), mais da metade da população brasileira ainda não possui acesso às redes de coleta de esgotos e somente 39% dos esgotos do país são tratados. Cerca de 35 milhões de brasileiros ainda não possuem água tratada e temos mais de 5 milhões de pessoas sem acesso a sanitários. Soma-se a isso que 37% da água potável é perdida em vazamentos, “gatos” ou problemas de medição.
Esta crítica realidade urge por melhores condições básicas de dignidade humana, qualidade de vida e saúde pública. Neste sentido, a Assemae entende como imperativo ampliar esforços e a presença dos operadores de água, esgotos e resíduos em áreas irregulares, especialmente nas regiões metropolitanas.
Em Porto Alegre, município cujas quatro modalidades do saneamento são prestadas diretamente por órgãos municipais, em 2010 havia 267 aglomerados subnormais, com 56 mil domicílios e 192 mil pessoas conforme o IBGE. Atualmente, fala-se em até 700 ocupações irregulares no município. O Departamento Municipal de Água e Esgotos – DMAE, associado à Assemae, tem acumulado experiências importantes em termos de abastecimento de água e coleta de esgotos em áreas irregulares, trabalho que tem sido contínuo ao longo das últimas três décadas e perpassa governos de diferentes orientações políticas. O avanço destas experiências pode ser percebido inicialmente até mesmo pela nomenclatura das iniciativas institucionais adotadas numa linha do tempo, começando pelo “Ramal Coopera”, passando pelo “Água Certa” e atualmente atuando especialmente por meio do programa “Consumo Responsável”. A partir dessa experiência, apresentam-se na sequência algumas observações que se entendem importantes na elaboração de diretrizes para a ampliação do abastecimento de água e da coleta de esgotos em áreas de ocupações irregulares.
Em primeiro lugar, é necessário que as soluções sejam definidas por meio do diálogo entre o executivo, o legislativo e setores do judiciário que recebem constantemente demandas de comunidades oriundas de ocupações irregulares relativas à infraestrutura de saneamento, especialmente Ministério Público e Defensoria Pública. Além disso, é necessário ter clareza que a intervenção nas comunidades irregulares, especialmente naquelas em situação de vulnerabilidade social, não se trata de intervenção pontual restrita às infraestruturas físicas. É necessário buscar a articulação entre o poder público e a sociedade civil localizada nestas regiões. Neste sentido, tem sido fundamental a contratação e promoção de trabalho técnico social, para desenvolver um conjunto de ações visando estimular a organização comunitária, a participação social e a educação sanitária e ambiental, antes, durante e após as obras. Em linhas gerais, mais do que a execução de uma obra, em sentido amplo devemos buscar o estabelecimento de um pacto de cooperação social entre o órgão de saneamento com a comunidade, onde estejam expressos os direitos e deveres de cada parte.
Logo que as ocupações se estabelecem, e, portanto, ainda são jovens, é possível em determinado momento pactuado com a comunidade autorizar o consumo social, instalando macromedidores que permitam a qualificação da pressão e o monitoramento do consumo, ainda que com redes estabelecidas pelas próprias comunidades, no que o órgão pode, inclusive por questões de saúde pública, dar orientações gerais sobre como melhorar, nas condições possíveis, a qualidade das redes e instalações hidrossanitárias. Em muitos casos as redes clandestinas ligam-se no ramal de um morador regular, gerando baixa pressão em função da derivação normalmente crescente destas redes, ou então diretamente nas redes de distribuição, ocasionando fugas e perdas significativas na maior parte dos casos.
Tendo início o processo de regularização, a Assemae defende que em determinado momento - que até então tem se estabelecido num prazo mínimo de 5 anos - possam ser estendidas redes, comparando critérios entre as ocupações que permitam selecionar as consideradas consolidadas, onde seja irreversível a regularização. Neste sentido, a Lei Nº 11.977/2009, que dispõe sobre o Programa Minha Casa, Minha Vida, em seu artigo 47, inciso II, define o conceito de área urbana consolidada, como sendo a parcela da área urbana com densidade demográfica superior a 50 habitantes por hectare e malha viária implantada e que tenha, no mínimo, dois dos seguintes equipamentos de infraestrutura urbana implantados: a) drenagem de águas pluviais urbanas; b) esgotamento sanitário; c) abastecimento de água potável; d) distribuição de energia elétrica; ou e) limpeza urbana, coleta e manejo de resíduos sólidos.
Neste processo, é preciso separar o joio do trigo. Nem sempre o trabalho é fácil, mas faz-se necessário enfrentar o desafio de reconhecer que existem algumas ocupações as quais servem a interesses específicos de alguns grupos, que estão acima do propósito legítimo de garantir habitação para um conjunto de famílias. Sejam estes interesses econômicos ou políticos, tendem estas ocupações a não se consolidarem e, nestes casos, entende-se que não podem receber atenção prioritária do poder público. Além disso, não se pode estimular a ampliação de ocupações irregulares, por isso, é preciso pactuar com as comunidades o conhecido “congelamento das áreas”, que deve sempre continuar a ser reafirmado, mas que na prática muitas vezes não é respeitado. Áreas totalmente ocupadas ou ocupadas em sua maior parte, como prevê a Lei 11.977, bem como áreas circundadas por regiões regulares no seu entorno facilitam a não expansão. Da mesma forma, importa agir com firmeza no respeito a alguns limites e contingências técnicas, como por exemplo, as áreas alagáveis, onde é necessário sugerir remoções ou deslocamentos conforme o caso, bem como áreas de preservação ambiental, especialmente as encostas de morro.
Mesmo com esses cuidados, para garantir uma situação aceitável e defensável do ponto de vista jurídico, em Porto Alegre tem se adotado o abastecimento de caráter provisório, até que se estabeleça a regularização da área, ou ainda eventualmente a remoção da comunidade. Neste escopo, foi criado o Programa Consumo Responsável que contempla duas modalidades, a primeira para áreas que estão a mais de cinco anos cujas diretrizes são: execução de redes conforme os diâmetros indicados pela ABNT até o medidor coletivo, igual ou superior a 63mm, e execução de redes em polietileno de alta densidade (PEAD) com diâmetro de 40mm após o medidor. Além disso, admite-se, em alguns casos, pressões inferiores a 10 m.c.a. As redes públicas são setorizadas, com controle de consumo por medidores coletivos, sendo que cada setor atende a aproximadamente 50 residências. Cada ligação predial é atendida por ramal de PEAD 20mm e conta com um cavalete individual em ferro galvanizado.
A segunda modalidade, ainda incipiente, visa atender comunidades mais recentes, por meio da instalação de um ponto de água com macromedidor coletivo no início da comunidade. Nesta modalidade a rede é construída pelos próprios moradores sob a orientação do DMAE, devendo ser construída em PVC, longe de valos e valetas. A medição é realizada, cadastrada e o consumo rateado pelo número de economias gerando contas individualizadas. Este primeiro contato entre comunidade e prestador dos serviços de saneamento é fundamental, pois possibilita o estabelecimento de uma relação de consciência, responsabilidade e consequência no uso adequado da água, visto que todos deverão pagar por ela. No mesmo sentido, é realizado um pacto de cooperação com a comunidade por meio do trabalho técnico social.
Um dos pontos fundamentais quando se trata da promoção do saneamento básico, especialmente em áreas vulneráveis, é a saúde pública. Mais do que um direito reconhecido internacionalmente, a promoção de infraestrutura que permita a segurança no abastecimento de água e coleta de esgoto promove a diminuição de exposição da população a fatores de risco sanitário e aos vetores de doenças hidricamente veiculadas. A Organização Mundial da Saúde argumenta que a cada dólar investido em saneamento poupam-se mais de 4 dólares em saúde pública. Dessa forma, o investimento na normalização do abastecimento em áreas irregulares também cumpre seu papel sanitário em termos de saúde pública e melhoria nas condições de saúde da comunidade.
Esta experiência aponta para uma questão central do saneamento no Brasil, qual seja, a busca constante por melhores condições operacionais que impactem na redução de perdas d’água na rede de distribuição. O consumo social aponta nessa direção, pois ao fornecer condições mínimas para o abastecimento das áreas irregulares desestimula o roubo d’água via ligações clandestinas (gatos), as quais, via de regra, apresentam vazamentos e consumos exagerados, potencializando as perdas gerais do sistema. Além disso, a experiência do trabalho técnico social mostra ser possível promover uma cultura de cuidado e responsabilidade com a água consumida, reduzindo o desperdício e paulatinamente sensibilizando a população destas áreas para sua responsabilidade na redução do consumo e também sobre o custo da água.
Nesse sentido, os programas de abastecimento em áreas irregulares não devem se restringir a dar acesso e segurança ao fornecimento de água e coleta de esgotos às comunidades. Para além disso, deve-se promover a cultura da responsabilidade e da adimplência. A ampliação de responsabilidades deve ser desenvolvida em conjunto com a comunidade, para que ela entenda a importância da água distribuída e do esgoto coletado, bem como dos processos de tratamento e da remuneração destes serviços. Mesmo sem micromedição, os consumidores do Consumo Responsável em Porto Alegre recebem contas na forma de carnê com uma tarifa social básica, mas na medida em que a área é consolidada e o consumo micromedido, as famílias podem passar a compor o cadastro regular e receber faturas com o consumo real.
Este é um processo de inclusão social das comunidades, por isso, a migração e a maturidade dessas ações devem ser acompanhadas localmente e estabelecidas sempre em contato com o serviço técnico-social. Vale lembrar que entre os “17 Objetivos para o Desenvolvimento Sustentável” publicados pela ONU, especificamente o objetivo 6 versa sobre: “Assegurar a disponibilidade e gestão sustentável da água e saneamento para todos”. Ou seja, não basta promover a disponibilidade de água e saneamento, deve-se também apontar para modelos sustentáveis de gestão destes recursos, e neste sentido, o estímulo e a promoção do consumo responsável e consciente de seus deveres enquanto consumidor é importante também em áreas irregulares.
Muitas vezes um grande obstáculo para o avanço de programas de abastecimento de água e coleta de esgoto em áreas irregulares são os próprios marcos institucionais e legislações sobre o tema. Neste sentido, é fundamental a promoção de dispositivos legais adequados a estas realidades, especialmente no âmbito municipal, para que os operadores tenham a segurança jurídica necessária para empreender projetos desta natureza.
Por fim, buscou-se brevemente caracterizar a situação de ocupações irregulares no Brasil, os problemas decorrentes dessas ocupações e algumas políticas públicas positivas adotadas no sentido de promover a inclusão social e o cuidado com a água. Não obstante, trata-se de uma temática altamente complexa, que envolve além da relação estado-sociedade, também a relação transversal entre diferentes entes públicos. Dessa forma, deve-se avançar na promoção de um debate amplo e propositivo, que confira segurança às ações promovidas pelos operadores de saneamento e que vise atingir soluções e arranjos institucionais mais adequados para o fornecimento de água e coleta de esgotos nessas áreas consideradas críticas.
*Elisandro de Oliveira é Diretor Geral do Departamento Municipal de Água e Esgoto (Dmae) de Porto Alegre e Vice-Presidente da Assemae